Na coluna de hoje abordaremos um tema que tem sido objeto de acalorados debates no âmbito da 3ª Seção do Carf, qual seja, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral[2] (RE 574.706), a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Antes, todavia, de seguir adiante na análise da jurisprudência do Carf para tal questão, mister se faz dar um passo atrás e situar o contexto jurídico e, em especial, jurisprudencial, que gravita em torno da presente discussão.

Nesse sentido, é sabido que durante longo período se discutiu judicialmente a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, até que a questão se consolidasse no STJ em sentido desfavorável aos contribuintes, o que, inclusive, redundou nas súmulas 68 e 94 daquele tribunal superior[3][4].

Por sua vez, o STF, reiteradamente, não conhecia os recursos extraordinários interpostos contra decisões do STJ pautadas em tais fundamentos sumulares, ao pretexto de que tal discussão ofenderia apenas de forma reflexa a Constituição Federal, o que atentaria, por conseguinte, a sua Súmula 636[5]. Até então o posicionamento do Carf para questão era no exato sentido daquele firmado pelo STJ, ou seja, pela inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, conforme se observa, por exemplo, do Acórdão 3402-002.898 do Carf.

Acontece que, por intermédio do RE 240.785, o STF reviu esse seu posicionamento e, a partir de então, resolveu conhecer o mérito da discussão sob a perspectiva constitucional. Apesar de tal caso não estar sujeito à repercussão geral[6], foi submetido à apreciação do órgão Plenário do pretório excelso e, após quase uma década de pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, foi finalmente julgado favoravelmente ao contribuinte, ou seja, no sentido de ver reconhecida a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins[7].

Apesar de posição plenária do STF, tal fato não foi suficiente para consolidar o posicionamento do Tribunal para a questão, uma vez que, no interregno do pedido de vista formulado no citado RE 240.785, houve a interposição da ADC 18, bem como a atribuição de repercussão geral ao RE 574.706. E isso porque, neste abrasileirado modelo de “precedentes”[8] só é considerado como tal aquele julgado que apresente uma força vinculante de caráter formal, não bastando, para tanto, posição plenária da mais alta corte do país[9].

Pois bem. Em sessão realizada em 15 de março de 2017, finalmente o Recurso Extraordinário 574.706 foi objeto de julgamento pelo STF com placar final 6 votos a 4 a favor da tese do contribuinte. Não obstante, tal questão ainda não chegou ao fim, já que a União interpôs embargos de declaração contra tal decisão, cuja finalidade pragmática, dentre outras, é obter a modulação de efeitos para a decisão veiculada pelo STF[10]. E, tendo em vista a inexistência de trânsito em julgado do aludido precedente, surge a dúvida quanto à convocação da sua ratio decidendi para a resolução de processos análogos julgados pelo Carf, haja vista o disposto no artigo 62, parágrafo 2º do Regimento Interno do Carf[11].

Segundo tal dispositivo regimental, as decisões julgadas definitivamente pelo STF em sede de recursos repetitivos e, de forma extensiva, também aqueles sujeitos à repercussão geral, devem ser reproduzidas nos julgados do Carf. Logo, não sendo ainda a decisão do STF definitiva, pois ainda pendente de análise de embargos de declaração e ulterior trânsito em julgado, remanesce a discussão se o citado Tribunal administrativo já estaria ou não vinculado à decisão pretoriana.

Diante deste quadro, surgem três posicionamentos distintos no seio das turmas ordinárias daquele tribunal administrativo, os quais poderiam ser nominados de (i) conservador, (ii) prudente ou moderado e (iii) arrojado.

O posicionamento mais conservador é no sentido de que, até o advento de trânsito em julgado do precedente vinculante do STF, os julgadores do Carf ainda estariam livres para decidir de acordo com suas convicções pessoais e na esteira dos precedentes daquele próprio tribunal administrativo, o que ainda tem redundado em decisões no sentido de manter a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Nesse diapasão é o teor dos acórdãos Carf 3402-006.283 e 3301-005.182. Segundo tal posicionamento, a inexistência de trânsito em julgado no leading case faz com que sua rationão seja ainda vinculante ao Carf e que, convocá-la neste instante, com uma possibilidade de modulação de efeitos em favor da Fazenda Pública, seria temerário. Em contrapartida, é inegável que tal posicionamento parte de um pressuposto — não necessariamente verdadeiro — de que haverá a citada modulação em favor da União, bem como fomenta a judicialização da demanda, o que se contrapõe a um dos escopos do processo administrativo: o de evitar a judicialização das demandas administrativas.

Por sua vez, existe uma posição que pode ser chamada de moderada ou prudente que, em razão da pendência de definitivo trânsito em julgado do leading case no STF e, ainda, ante a possibilidade de uma eventual modulação de efeitos, tem defendido o sobrestamento dos julgados no Carf que abordem tal questão, mediante aplicação subsidiária do disposto no artigo 1.035, parágrafo 5°, c.c. o artigo 15, ambos do CPC/2015[12]. Tal posicionamento está retratado no voto vencido do já citado acórdão Carf 3402-006.283, bem como nas resoluções Carf 3401-001.380 3 3401-001.387. Este entendimento tem por escopo promover uma solução mais justa à realidade da discussão após a solução a ser dada pelo STF, embora, em contrapartida, crie com tal proposta um espólio de processos sobrestados no Carf sem que haja previsão regimental para tanto.

Por fim, existe ainda uma terceira corrente, mais arrojada, que entende pela aplicação imediata do precedente pretoriano, uma vez que, segundo tais adeptos, o próprio STF (e também o STJ) já estaria aplicando a sua decisão em julgamentos monocráticos, inclusive com a imposição de multa por litigância de má-fé em prejuízo da Fazenda Nacional. É o teor, por exemplo, do acórdão 3201-004.124[13]. Tal entendimento está em perfeita sintonia com o conteúdo em si do julgado pretoriano e, por conseguinte, com uma ideia de segurança jurídica de índole material, mas também se sujeita ao risco de antecipar uma vitória aos contribuintes em maior extensão àquela a ser de fato efetivada pelo STF, haja vista a possibilidade do precedente pretoriano vir a ser objeto de limitações em razão de uma eventual modulação de efeitos.

Tais apontamentos demonstram, por si só, o imbróglio decorrente da discussão aqui tratada. Acontece que, tal polêmica, não termina aí, na medida em que convocar ou não a ratio decidendi do precedente veiculado pelo STF não é suficiente para, per si, por fim a questão. Isso porque, para aqueles que defendem a convocação imediata do precedente pretoriano, resta ainda delimitar qual a extensão da exclusão a ser realizada, ou seja, se seria o montante destacado em nota fiscal ou aquele efetivamente pago pelo contribuinte, tudo isso em razão do disposto na Solução de Consulta Interna 13/2018.

Tal questão ainda vem sendo debatida de forma incipiente no Carf, mas já é possível encontrar manifestações no sentido de que o desconto deve ser pautado pelo valor efetivamente pago a título de ICMS e não o destacado, como se observa, por exemplo, do Acórdão 3302-006.550, julgado por maioria de votos[14].

Percebe-se, portanto, que a questão é ainda bastante controversa no seio do Carf, controvérsia essa alimentada pela demasiada demora por parte do STF em resolver definitivamente essa questão que lá tramita há mais de 10 anos, em especial pela indevida postergação quanto à análise de uma possível modulação de efeitos em favor da União, questão essa que, na qualidade de técnica de julgamento[15], poderia já ter sido conhecida de ofício pelo pretório excelso. Tal postura vacilante do STF, entretanto, só serve para fomentar uma patente sensação de insegurança jurídica para uma questão tributária tão relevante.

[1] Este texto não reflete a posição institucional do Carf, sendo fruto de uma análise da sua jurisprudência a partir de um estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[2] O que redunda em um precedente de caráter vinculante.
[3] Súmula 68
A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS.
Súmula n. 94
A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL.
[4] Tais súmulas, diga-se de passagem, já foram revogadas pelo próprio STJ, o que se deu após o advento do precedente do STF veiculado no RE n. 574.706 e que será abordado a adiante no presente texto.
[5] Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.
[6] Já que anterior à Emenda Constitucional n. 45/04 e a inserção do art. 103, § 3º no texto constitucional.
[7] Precedente este que restou assim ementado:
TRIBUTO – BASE DE INCIDÊNCIA – CUMULAÇÃO – IMPROPRIEDADE.
Não bastasse a ordem natural das coisas, o arcabouço jurídico constitucional inviabiliza a tomada de valor alusivo a certo tributo como base de incidência de outro.
COFINS – BASE DE INCIDÊNCIA – FATURAMENTO – ICMS.
O que relativo a título de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e a Prestação de Serviços não compõe a base de incidência da Cofins, porque estranho ao conceito de faturamento.
(STF; RE 240.785, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2014, DJe-246 DIVULG 15-12-2014 PUBLIC 16-12-2014 EMENT VOL-02762-01 PP-00001).
[8] Para uma análise crítica do modelo de precedentes no Brasil seu reflexos no âmbito tributário: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Paulo César Conrado. (Org.). Processo Tributário Analítico – vol. III. São Paulo: Noeses, 2016, v. III, p. 111-140.
[9] Lembrando que tal precedente é anterior ao CPC/2015 e o disposto no seu art. 927, inciso V.
[10] A respeito da possibilidade de modulação de efeitos nesta questão: RIBEIRO, Diego Diniz; DELIGNE, M. S. P. A modulação de efeitos em matéria tributária e sua realização em favor da Fazenda Pública. In: Paulo Cesar Conrado; Juliana Furtado Costa Araujo. (Org.). Processo Tributário Analítico. São Paulo: Noeses, 2018, v. IV, p. 97-132.
[11] Art. 62 (…).
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.
[12] Aprofundando mais as razões para o sobrestamento: RIBEIRO, Diego Diniz; BRANCO, Leonardo O. A. . CARF deve suspender processos de ICMS na base da Cofins? . Jota, https://www.jota.info/artigos/, 03 maio 2017.
[13] Segundo o Relator do caso nem mesmo o STJ estaria aplicando os precedentes até então existentes naquele Tribunal para a matéria, curvando-se, pois, ao entendimento do STF. Neste sentido destaca-se o seguinte trecho do voto:
Com a decisão proferida pela Corte Suprema, não mais prevalece o contido no REsp 1.144.469/PR do Superior Tribunal de Justiça STJ. O entendimento ora esposado encontra amparo no fato de o próprio Superior Tribunal de Justiça STJ não mais estar aplicando o seu antigo posicionamento. A Corte Superior de Justiça, de modo reiterado, está decidindo de acordo com o julgado no RE 574.706.
(…).
Um órgão administrativo de julgamento não aplicar o decidido em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal STF quando até mesmo o Superior Tribunal de Justiça STJ já não mais aplica o seu entendimento em sentido diverso é verdadeira afronta ao julgado pela mais Alta Corte do país.
[14] O qual restou assim ementado:
Assunto: Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins
Período de apuração: 01/01/2002 a 30/06/2006
ICMS. BASE DE CÁLCULO. PIS/COFINS. NÃO INCLUSÃO.
O montante a ser excluído da base de cálculo mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS a recolher, conforme o entendimento da Solução de Consulta Interna nº 13/2018.
[15] Neste sentido: RIBEIRO, Diego Diniz. A modulação de efeitos no controle de constitucionalidade em matéria tributária e a jurisprudência do STF. In.:Revista Dialética de Direito Tributário, v. 178, p. 25-44, 2010.

Fonte: consultor jurídico