Justiça deve avaliar caso a caso e, apesar de ser difícil a comprovação desse tipo de contágio, especialistas afirmam que trabalhador pode pleitear

Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) abriu caminho para profissionais que mantiveram sua atividade de trabalho dentro da empresa possam caracterizar a contaminação pelo novo coronavírus como doença ocupacional e, assim, garantir um benefício do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) mais atrativo.

Ao classificar a covid-19 como uma doença ocupacional, a advogada Adriana Calvo, professora da FGV Direito RJ e coordenadora de direito individual da OAB/SP, explica que o trabalhador tem direito ao benefício integral, a partir do primeiro dia de contratação, e estabilidade de 12 meses no emprego.

Especialistas ouvidos pelo R7 estão divididos sobre o assunto, mas a maioria reconhece que cabe ao empregador comprovar que deu subsídios necessários dentro da empresa para descartar a contaminação.

Guilherme Feliciano, juiz do trabalho da Sexta Câmara do TRT-15 (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região), acredita que, se o trabalhador não tem veículo próprio e precisa usar o transporte público para a ida ou volta ao trabalho, pode ser contaminado e receber o auxílio por acidente de trabalho.

Ele cita o Artigo nº 21, inciso 4º, alínea D da lei nº 8.213/91 que equipara o auxílio acidentário ao de acidente de percurso.”

“Quando há a classificação de acidente de trabalho, o empregado usufrui do direito automático à cobertura do INSS mesmo que tenha acabado de começar a contribuir com o sistema. O mesmo não ocorre para o auxílio-doença”, diz o magistrado que também é professor do departamento de direito trabalho e seguridade social da USP (Universidade de São Paulo).

Feliciano ainda acrescenta que, mesmo que alguns advogados de empresas estejam se apegando ao Artigo nº 20, parágrafo 1º, alínea D da mesma lei que exclui do hall de acidentes de trabalho doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, o mesmo artigo acrescenta que “salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.

“O contágio do coronavírus pode sim acontecer durante a exposição do trabalhador na ida ou volta ao trabalho ou no local de trabalho. Então, a classificação como acidente de trabalho se enquadra perfeitamente.”

Guilherme Feliciano

João Badari, advogado especializado em direito previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados, concorda com o magistrado e ressalta, apenas, a dificuldade que o trabalhador pode ter para comprovar o contágio no percurso à empresa.

“Se o trabalhador usa ônibus fretado pela empresa, não há a exigência de máscara, não tem álcool em gel disponível e não há o distanciamento social, ele pode ser contagiado por outro funcionário que está com o vírus.”

João Badari

Badari também ressalta que se ele está cumprindo o isolamento em casa, com a sua família e só sai para ir ao trabalho e sabe de casos positivos no trabalho, pode facilitar a comprovação.

Outro advogado, João Alexandre Abreu, também especialista direito do trabalho e previdenciário, engrossa o coro dos especialistas.

 

De acordo com ele, se o empregado quebrar uma perna jogando futebol no fim de semana, não pode ser considerado como um acidente de trabalho, mas se isso ocorre no caminho ao trabalho, pode.

“A mesma regra vale para a Covid-19. Se ele provar que cumpre o isolamento e só sai para ir ao trabalho, pode obter a cobertura.”

João Alexandre Abreu

Judiciário deve avaliar caso a caso.

Adriana ainda adverte que existe uma epidemia oculta de transtornos mentais advindos das medidas de isolamento e quarentena da covid-19 e que as empresas estão somente se preocupando com a saúde física.

“E se o empregado tem uma crise de pânico ao entrar num ônibus lotado com medo de ser contaminado no trajeto para o trabalho? E o trabalhador que já teve covid-19, como será o seu retorno na empresa? E se ele desenvolver alguma síndrome do pânico? A empresa precisa ver como vai lidar com esta situação.”

Adriana Calvo

Sebastião Geraldo de Oliveira, desembargador do TRT-MG (Tribunal do Trabalho de Minas Gerais), defende que a classificação da covid-19 como doença ocupacional, ou seja, em razão do trabalho, deverá ser avaliada caso a caso pelo judiciário.

“A doença é nova e vem gerando controversa. A tuberculose não é vinculada ao trabalho, mas se o profissional atua em um laboratório ou hospital, pode ter sido contaminado no ambiente de trabalho. Será preciso avaliar caso a caso.”

 

Oliveira acrescenta que profissionais que atuam como lixeiro, coveiro, que tenham contato com o público ou que trabalham em supermercados, farmácias e hospital terão mais facilidade para comprovar acidente de trabalho.

“Se esses profissionais vierem a óbito poderão gerar uma pensão [pagamento integral do benefício] para seus familiares.”

Sebastião Geraldo de Oliveira

Para o desembargador, pode-se usar a presunção para a contaminação do trabalhador pela covid-19 no transporte para ir ao trabalho.

“Vou analisar cada processo de forma individual, avaliar se o trabalhador foi exposto a um risco maior do que o normal, por exemplo.”

 

Assim como o desembargador, o advogado Marcus Vinicius Vaz Neves, especialista em saúde e segurança do trabalho do Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados, também acredita que a caracterização de acidente de trabalho vai depender de cada caso.

“Se ele disser que pegou a covid-19 na empresa, caberá ao empregador o ônus da prova. Para comprovar o contrário, a empresa terá de mostrar que ofereceu máscara, álcool em gel, higienizar o ambiente, medir a temperatura, entre outros.”

Marcus Vinicius Vaz Neves

No entanto, ele mesmo reconhece que não será fácil para a empresa se cercar completamente. Uma coisa é o home office. Outra é dividir o ambiente de trabalho, banheiro e refeitório, diz o advogado.

 

“Com exceção do home office, o trabalhador que pegar covid-19, em regra, pode alegar que foi contaminado no ambiente de trabalho. Vai depender da boa-fé dele”, explica Neves.

Medidas de segurança deverão ir além da legislação

Neves acrescenta que, em momentos de pandemia, não basta a empresa só cumprir a lei. “As empresas terão de complementar medidas de segurança mais rigorosas que vão além do que a lei exige.”

Adriana concorda que é de suma importância a adoção pelas empresas de medidas preventivas e educativas e cita o precedente nesse sentido do TST (Tribunal Superior do Trabalho) no caso da epidemia do H1N1.

 

Sobre as medidas de segurança, a advogada destaca uma portaria publicada no DOU (Diário Oficial da União) do dia 18 de junho que estabelece, entre outras regras, ações para o transporte do trabalhador:

• Adotar procedimentos para comunicação, identificação e afastamento de trabalhadores com sintomas da covid-19 antes do embarque no transporte para o trabalho, quando fornecido pelo empregador, de maneira a impedir o embarque de pessoas sintomáticas, incluindo eventuais terceirizados da organização de fretamento.
• O embarque de trabalhadores no veículo deve ser condicionado ao uso de máscara de proteção.
• Os trabalhadores devem ser orientados no sentido de evitar aglomeração no embarque e no desembarque do veículo de transporte, devendo ser adotadas medidas que garantam distanciamento mínimo de um metro entre trabalhadores.
• A organização deve priorizar medidas para manter uma distância segura entre trabalhadores, realizando o espaçamento dos trabalhadores dentro do veículo de transporte.
• Deve-se manter preferencialmente a ventilação natural dentro dos veículos e, quando for necessária a utilização do sistema de ar-condicionado, deve-se evitar a recirculação do ar.
• Os assentos e demais superfícies do veículo mais frequentemente tocadas pelos trabalhadores devem ser higienizados regularmente.
• Os motoristas devem higienizar frequentemente as mãos e o seu posto de trabalho, inclusive o volante e superfícies mais frequentemente tocadas.
• A organização deve manter registro dos trabalhadores que utilizam o transporte, listados por veículo e viagem.

Atualmente, segundo Neves, mais de 4 mil inquéritos relacionados ao coronavírus foram instaurados no MPT (Ministério Público do Trabalho).

E um levantamento feito pelo TST apontou que existem 7.700 ações sobre o tema na justiça do trabalho em todo o país.

 

“Não são ações somente sobre adoecimento. Envolvem demissões, hora extra e várias outras situações.”

A advogada Daniela Reis, especialista em direito do trabalho do escritório Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados, também acredita que o juiz avaliará todas as circunstâncias para dar seu veredito sobre ser ou não acidente de trabalho.

“O empregador terá de apresentar provas robustas de que ofereceu todas as medidas de segurança para o funcionário: pia com sabão líquido na entrada da empresa, máscaras, álcool em gel, luvas, roupão especiais para os casos que exigem, entre outros. E cabe ao empregador o ônus de fiscalizar o uso correto dos equipamentos.”

Daniela Reis Bocater

Qual é a discussão?

A discussão sobre a covid-19 ser considerada ou não uma doença ocupacional começou com a publicação da Medida Provisória nº 927.

O artigo 29 dizia que a contaminação pelo coronavírus não seria entendida como relacionada ao trabalho a não ser que o funcionário comprovasse o nexo casual ao trabalho.

“Essa previsão contrariava toda a tendência do direito previdenciário que trabalha com presunções. Se o ambiente de trabalho tem registrado 10 casos de contágio, tudo indica que ele se contaminou na empresa”, diz Feliciano.

 

Uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) questionou o artigo e o ministro do STF Alexandre de Morais acatou entendimento de sua inconstitucionalidade.

Apesar de ainda não ter ido para votação no plenário, o meio jurídico entende que a decisão será mantida.

A advogada Luciana Nunes Freire, diretora executiva jurídica da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), discorda da decisão do STF e da Adin.

“A Lei nº 8.213/91, criada antes mesmo da decisão do STF, não foi revogada pelo Supremo e estabelece que o nexo causal é do empregado e não do empregador.”

Luciana Nunes Freire

Para ela, cabe ao trabalhador comprovar que foi contagiado pela covid-19 no trabalho.

“É impossível afirmar que ele pegou na empresa ou no transporte público em meio à pandemia e contaminação coletiva no Brasil e no mundo.”

Fonte: R7 Economia / Dou Artigo nº 21, inciso 4º, alínea D da lei nº 8.213/91 

Trabalhista / Previdenciario

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