Recentemente, o Facebook anunciou a criação da Libra: uma moeda global e digital que estará no mercado a partir de 2020, permitindo transações internacionais com moedas locais, por meio das diversas plataformas digitais da empresa. Diferente de outras criptomoedas já existentes, a Libra pode revolucionar os meios de pagamento: será operacionalizada por aplicativos próprios e muito difundidos, como o Whatsapp e o Messenger.

Como efeito imediato dessa notícia, ao mesmo tempo em que o Bitcoin valorizou-se em 20%, diversas jurisdições manifestaram apreensão – o Banco Central Europeu imediatamente constituiu uma força tarefa para analisar os reflexos legais e regulamentares da Libra. Essa discussão reforça a importância do debate das criptomoedas no Brasil. O objetivo deste artigo é jogar luzes sobre o tema, sob a perspectiva tributária. Inicialmente, porém, algumas distinções devem ser realizadas.

As criptomoedas enquadram-se no conceito mais amplo de “moeda digital”, cujas representações de valor não são regidas por normas de bancos centrais (descentralização regulatória) e decorrem da confiança no próprio sistema e partes envolvidas. Além disso, como regra, são operacionalizadas por meio de Blockchain, uma plataforma que suporta instrumentos de negociação, e a validação das transações criptografadas. Esse conceito não se confunde com as “moedas eletrônicas”, que são devidamente reguladas (centralizadas) e recebem tal denominação em razão de estarem armazenadas em dispositivo ou sistema eletrônico, em que o usuário final consegue realizar pagamentos.

Dito isso, da perspectiva nacional, o Banco Central do Brasil (Bacen) não reconhece as criptomoedas como passíveis de conversão para moedas soberanas, pois não são garantidas e nem emitidas por qualquer autoridade monetária. Para o Bacen, as criptomoedas não representam riscos ao sistema financeiro e, por ora, não serão regulamentadas. Na mesma direção caminha a Comissão de Valores Mobiliários (CVM): não há regulação específica para o mercado de moedas digitais, a despeito de reconhecer que alguns criptoativos podem gerar direitos societários quando se enquadrarem no conceito de valores mobiliários, nos casos de ICOs (Initial Coin Offerings).

Do ponto de vista tributário, recentemente, a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) publicou a IN 1.888/2019, que trata do dever de as exchanges domiciliadas no Brasil e dos particulares que realizam operações com criptoativos declararem informações às autoridades tributárias. Deverão ser informadas, dentre outras, as transações mensais que envolvam compra e venda, permuta, doação, transferência e retirada de ativos.

Além disso, há orientações infralegais da SRFB quanto ao dever de os particulares declararem a propriedade de criptomoedas e, por conseguinte, recolherem ganho de capital na hipótese de alienação. De acordo com a Receita, as moedas virtuais devem ser declaradas com “outros bens”, pois são equiparadas a um ativo financeiro.

Muitas questões jurídico-tributárias decorrem dessas determinações. Primeiro, o conflito entre o dever de informar as transações, nos termos da IN 1.888/2019, e a garantia do sigilo bancário dos contribuintes. A Lei Complementar 105/2001 estabelece que a transferência do sigilo bancário para as autoridades fiscais é permitida, mas deve se limitar às instituições financeiras, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).

As transações em ambiente não regulado não se adequam a essas premissas, por se realizarem sem envolvimento de instituições financeiras. Sendo assim, parece-nos que a SRFB não teria bases legais para exigir informações sobre operações envolvendo criptomoedas no Brasil.

Segundo, há diversas incertezas quanto à apuração da base de cálculo do imposto de renda devido. A SRFB determina a declaração das moedas virtuais pelo custo de aquisição. Porém, não há, para fins fiscais, regra legal de conversão desses instrumentos, uma vez que não possuem cotação oficial. Assim, pode haver dificuldades em se definir, com segurança, qual o custo de aquisição. Há também dúvidas sobre transações envolvendo trocas de uma moeda virtual por outra moeda virtual (Bitcoin por Etherium, por exemplo), como também por outros bens.

Finalmente, há a atividade de mineração, que permite aquisição originária de criptomoedas. Não há clareza normativa sobre a apuração (e eventual incidência) do imposto de renda sobre ganho de capital em nenhuma dessas hipóteses.

Em terceiro e último lugar, é sabido que as moedas virtuais objetivam se tornar moedas globais e plataformas financeiras descentralizadas. Contudo, em razão da atual falta de regulamentação no Brasil, parece-nos que transações internacionais envolvendo criptomoedas escapariam ao controle das autoridades fiscais, já que se trata, apenas, de representação de valor desregulado.

Os riscos de evasão fiscal e uso indevido são evidentes. De outro lado, há inegável potencial tributário nas operações com criptomoedas. Contudo, seguimos sem clareza. As dúvidas que elencamos não estão respondidas pelas autoridades tributárias ou regulatórias. A introdução de uma nova moeda, que conecta diversas plataformas vastamente utilizadas no Brasil, pode mudar o cenário quanto ao acesso a criptomoedas no país. Segurança jurídica e previsibilidade são fundamentais para que o Brasil se adapte à evolução da oferta de serviços financeiros.

Por Tathiane Piscitelli e Raphael Romero Bentos

Fonte: Valor Econômico