O Brasil é uma República. Dentre os atributos conceituais de uma República, está o da igualdade formal entre as pessoas. Vale dizer, “numa verdadeira República não pode haver distinções entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, entre poderosos e humildes, não há classes dominantes nem dominadas. É um regime de igualdade”(CARRAZZA).

Parece obvio que “não teria sentido que cidadãos se reunissem em república, erigissem um Estado, outorgassem a si mesmos uma constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem, seja de modo direto, seja indireto, a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional, da ereção do regime” (ATALIBA). A “res publica” é de todos e para todos.

Como aceitar, neste contexto, a outorga de superpoderes a um julgador em um colegiado, tal como ocorre na maioria dos tribunais administrativos tributários, especialmente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF)? Não nos referimos ao voto de desempate, que é absolutamente normal e necessário.

Referimo-nos à possibilidade de se atribuir a um único julgador, a possibilidade de que seu voto valha por dois. Tenha direito a um “voto duplo”.

Vale dizer, para constituir um crédito tributário que se deseja “certo”, admitese, diante de um empate que é “a expressão máxima do incerto”, seja atribuído a um ser diferenciado e superpoderoso, a prevalência autoritária da sua vontade.

É admitir que uma “não maioria” prevaleça sobre uma “não minoria” para conferir o atributo da certeza ao crédito tributário.

O papel do contencioso administrativo, ao contrário do que defendem alguns, é o de dar cumprimento ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, caminhando ao lado do Judiciário e de outros órgãos incumbidos de exercer jurisdição, em busca da realização de um resultado justo.

Não coaduna com o direito moderno a premissa de que cabe apenas ao Judiciário o exercício do papel jurisdicional. O artigo 5º da Constituição Federal, em seus incisos LIV, LV e LXXVIII, assegura isto.

Esta visão é que norteia os países mais desenvolvidos, assumindo a realização de justiça por meio do processo, cabendo o exercício da jurisdição àqueles a quem foi outorgada a competência legal. Em uma visão de sistema, a jurisdição é una, mas exercida de forma universal, seja no processo judicial, no processo arbitral e, também, no processo administrativo

O processo administrativo tributário não é uma mera passagem. Não é um degrau. Não é um caminho que necessariamente deve desaguar no Judiciário. É poder jurisdicional qualificado por sua elevada
especialização. O Judiciário está atolado, assoberbado, ocupado por juízes que julgam milhares de causas, clamando pela descentralização da jurisdição.

O objetivo é, ao final, dar cumprimento a uma das funções do Estado “mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça” (DINAMARCO).
E o que é justiça em um processo administrativo tributário? É dirimir a lide, assegurando a constituição de um crédito tributário líquido, “certo” e exigível.

O atributo da “certeza” que aqui destaco, deve ser entendido como aquele impassível de gerar dúvidas. E neste contexto é que o julgamento colegiado deve prevalecer.

Alegam, alguns, que a constituição do crédito tributário “duvidoso” (decorrente de desempate por voto de qualidade) justifica-se pela “prevalência do interesse publico”.

E o que é interesse público? É constituir crédito certo e justo! Não é interesse fazendário. E admitir o contrário seria prestigiar o autoritarismo em detrimento da legalidade. É uma inversão inaceitável. É nesta linha o princípio “in dubio pro contribuinte” (art. 112 do Código Tributário Nacional).

Não se pode olvidar que o contribuinte é a parte fraca da relação jurídica tributária. Há a necessidade de, no processo administrativo tributário, “se conferir ao contribuinte necessárias garantias em face de um “ente avassalador” dotado de “tríplice função” (o Estado faz a lei tributária, é destinatário de seu comando, aplica-o, e julga a lide que venha a ser decorrente)” (COSTA, V. cit. por MARINS). E, complemento, é destinatário do fruto desta arrecadação.

O poderio estatal se mostra nos estudos da Escola de Direito da FGV/SP, quando aponta que entre 96% e 100% das decisões de desempate na Câmara Superior do Carf foram em favor da Fazenda Nacional (LEME, C.). E a Receita Federal do Brasil, coerente com a sua visão, esclarece que em caso de empate, é plenamente justificável que o voto de qualidade seja do representante da Fazenda Nacional, eis que se está diante de um julgamento administrativo, realizado por órgão integrante da estrutura do Ministério da Fazenda e que pode ser questionado pelo contribuinte junto ao Poder Judiciário (Disponível em: idg.receita.fazenda.gov.br/noticias).
Isto não é republicano!

Eduardo Perez Salusse é advogado, mestre pela FGV-SP, doutorando pela PUC-SP, professor de direito, presidente do Conselho do Movimento de Defesa da Advocacia Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

Fonte: Valor Econômico